Frases para pensar


No dia em que eu temer, hei de confiar em ti. Salmos 56:3

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Ternura - Um conto irônico de Natal

Minha mensagem de Natal é um conto breve que escrevi há três anos. Fala sobre a ternura perdida. Algo atual e que incomoda muito nestes dias tão sem Cristo em que vivemos. Espero que você recupere um pouco de sua alegria porque o menino nasceu e nos foi entregue para nossa salvação.

Feliz Natal. E ternura em sua vida. Graça e paz, sempre.

TERNURA


A chuva corria veloz do lado de fora. As pessoas apressadas empurravam-se em busca da melhor posição. Todos pareciam viver da urgência do ultimo suspiro. Corre daqui e dali e compras, múltiplas, algumas sem sentido, outras sem desejo. Mas é preciso comprar.
Afinal é Natal, tempo de refazer o estoque de itens na cozinha que só comemos uma vez ao ano e que muitas vezes nos encantam apenas pelo exotismo, ou porque possuem a falsa e densa impressão de nos lançar a um mundo a que não pertencemos.
Eu falo e observo essas coisas, mas sei que estou aqui no supermercado pelo mesmo motivo, comprar isso e aquilo, tender e peru, não pode ser só o tender? Não, tem que ser os dois porque afinal de contas é Natal. Mas e o menino Jesus, onde eu coloco no presépio? Esquece o menino Jesus, mas não esquece o tender, de bolinha, daquela marca melhor, não me chega aqui com porcaria.
Todo ano a mesma ladainha e o mesmo furor consumista, e o décimo terceiro nem chega ao final do duodécimo mês. Fiquei ali parado, enquanto a chuva encarregava-se de enlouquecer os clientes do supermercado.
Estava esperando inspiração para enfrentar a correria dentro do mercado. Pega e pesa, coloca no carrinho, pega de novo, escuta gritar a promoção e volta pra pesar de novo porque agora barateou. Uma loucura que depois de tantos anos sendo repetida já me causava fastio.
Ou será que me enlouquecia ainda mais? Ou o fastio tornara-se loucura e ao mesmo tempo me sentia na verdade viciado por tudo aquilo?  Lembrei dos natais infantis, a árvore de minha mãe e a expectativa doce por presentes de minha avó. Lembro do natal em que esperei ansiosamente pela possibilidade de ganhar um jogo de futebol de botões, já que meu primo recebera esse presente em seu aniversário. Não sei por que minha avó resolveu presentear-me com uma muda de roupa. Eu queria muito o jogo de botões, todos os meninos da rua já possuíam os seus. E me vi naquele Natal com uma muda de roupas, era assim que falavam, muda de roupa. Acho que significava que deveríamos mudar de roupa.
Nem sei por que me lembrava dessas coisas. Lembrei do ano em que herdei a bicicleta usada de meu primo mais velho; do esforço envergonhado para meus amigos nunca saberem. Parece que o Natal tem esse efeito em nós, reminiscências, contemplação. Ou será que o problema é só comigo? Lembrei da lista de compras em meu bolso. Do tender, do refrigerante, do espumante e da cerveja do meu cunhado.  Do I-Pod comprado para um dos filhos. O MP4 para o outro. E eu nem mesmo entendi direito para o que serviam tantos aparatos que nunca poderiam ser dos mais simples, sempre das marcas mais caras. Muito sinceramente a lembrança não tinha nada de saudosismo, apenas servia para mostrar que os tempos haviam mudado.
Na verdade nem sei se ainda consigo ser saudosista. Minha avó falava de doçura, ternura nas noites de Natal. Acho que noites natalinas hoje não sustentam a ternura no coração de alguém. Carrinho simples, caminhões, postos de gasolina de mentirinha, arma de polícia, agora politicamente incorreta, ou a sonhada bicicleta, até mesmo uma bola nova de futebol. O certo é que havia expectativa.
Hoje em dia, fiquei pensando, existe exigência. Vivemos o tempo da exigência, do controle remoto e das promoções mentirosas dos supermercados em época de festas. Fiquei rindo por dentro, pensando porque ainda me dava ao trabalho de pensar nessas coisas. Imaginei que talvez fosse um modo sutil de me fazer sofrer castigado pelo meu próprio cinismo. Descobri que já estava me atrasando para as compras, perdido nesses momentos em que tentava ser humano novamente. Então lembrei que meu possível atraso poderia resultar na irritação da esposa, os reclamos dos filhos, minha própria indulgente raiva, e o horror de pensar que teria que gastar quase duas horas dentro daquele mercado. Na verdade queria estar no meu futebol, na minha roda de amigos, ou quem sabe dormindo, não dormia bem há vários dias sem saber o motivo.
Então percebi a moça tentando sair para o estacionamento, o carro cheio de compras, abarrotado, entulhado, empilhado. Fiquei olhando seu carro de compras, lotado de coisas, de comida, pernil, tender, o tender parecia olhar para mim e me lembrar de meu compromisso, refrigerantes, água mineral, água especial, panetone, chocotone, biscoito, queijo e peru, e outras mil coisas dentro daquele carro abarrotado e sem mesmo saber o motivo pensei comigo mesmo, porque haveria tanta coisa naquelas compras se a moça era tão esguia, quase esquálida, não uma falsa magra, mas magra mesmo fazia até mesmo esforço para empurrar tanta coisa. Pensei para quem ela estaria empurrando aquela compra absurdamente exagerada.
Ela olhou a chuva que estava mais intensa e olhou o carrinho abarrotado e olhou as pessoas que se empurravam e que desejavam que ela desocupasse imediatamente a porta automática do mercado. Todos impacientes para se empanturrarem, para justificarem o quanto somos perdulários nessa época tão singela.
Foi então que vi seu olhar de fúria e percebi que não seria impossível que tão magra mulher empurrasse tanto peso. Segui sua fúria na tentativa de perceber o alvo, que poderia até mesmo ser dirigido a mim que empatava o trânsito na porta.
Mas vi uma adolescente distraída ao lado da mulher. Com fonespod e balançava o corpo levemente ao som de alguma batida musical que eu não saberia definir. Era mais alta que a mulher, mais forte, malhada, era assim que eles se definiam e tinha um olhar perdido, que ocultava sua emoção. Repentinamente a mulher começou a falar e reclamar da adolescente, as palavras saíam como lixa de sua boca, carregadas de uma amargura definida. A adolescente parou lentamente enquanto tirava um dos fones do ouvido.
Sua voz saiu pastosa, arrastada, uma corrente de água presa na barragem. O que você quer de mim mãe? Sua imprestável, nem o guarda-chuva você pode abrir? Você pediu? Droga e precisa pedir, preguiçosa? As palavras saíam com uma velocidade que nunca imaginei que a magrinha pudesse ter para proferir impropérios. Sabe de uma coisa mãe, vai na chuva, talvez acalme sua cabeça, você anda muito nervosa, disse a mocinha, inabalável. Então o tom de voz da mulher tornou-se ameaçador e mais palavras carregadas de uma cobrança por coisas feitas e que ainda seriam feitas. A menina olhou para mãe, recolocou o fone, pegou a chave do caro e caminhou para a chuva.
De meu ponto de observação percebi algo no andar da adolescente que não identifiquei de imediato, pois minha atenção se desviou para o tranco que a mulher magra deu em seu carro de compras, fazendo que alguns pacotes que estavam na parte de cima caíssem para o chão. Chão molhado, empoçado, do pátio do estacionamento. Os pacotes pareciam cair em câmara lenta e a fúria da mulher preparava-se para explodir da mesma forma.
Foi então que resolvi fazer alguma coisa. Saí para a chuva e me dirigi à mulher, eram poucos metros de distância, sem nem mesmo esperar uma aceitação ofereci ajuda e comecei a recolher pacotes e recolocar no caro de compras. Ela me olhou e sorriu um daqueles sorrisos que não conseguimos determinar se são reais, falsos, gratos ou exigentes. Foi quando sua voz saiu de dentro da garganta, um misto de angústia e fragilidade, foi o que pensei depois de ouvi-la dizer: filhos adolescentes, não nos ajudam e essa chuva, pior ainda.
Nessa hora lembrei da mocinha e do carro de ambas. E olhei. A jovem vinha em nossa direção com o guarda-chuva aberto. E reparei no andar que me incomodava. Queria saber por quê? Ela parou sobre nós dois, nos protegendo da chuva e entregando uma outra sombrinha para a mãe. A mulher magra abriu a sua e me ofereceu proteção enquanto agradecia. A menina não esboçou nenhuma palavra, apenas começou a empurrar o carro de compras em direção ao veículo, e o mesmo andar, e o mesmo incômodo me abateu.
Tirei o carro de compras de sua mão dizendo: deixa-me apressar vocês que a chuva está impiedosa. Cheguei ao veículo, a mala já estava destrancada. Ofereci ajuda para colocar as coisas lá dentro. A mulher me olhou, agora já recomposta e determinada novamente: muito obrigada, não é necessário, nós mesmas faremos, o senhor já foi muito gentil, não é mesmo filha? A mocinha me olhou, a esta altura o I-pod não estava mais em seus ouvidos. Ela me fitou por alguns instantes e disse com uma voz totalmente diferente da que ouvi antes quando reclamou com a mãe: valeu tio, o senhor é gente boa, coisa rara hoje em dia nos adultos. E sorriu com o canto da boca. Imediatamente o sorriso sumiu e então entendi meu incômodo.
Voltei em direção ao mercado e entendi porque ao olhar aquela mocinha meu peito doía de tanta angústia: a força determinada de sua mãe já havia destruído sua graça de viver. Ela nunca mais seria uma jovem espontânea de verdade. Ao entrar no mercado e pensar nas minhas tarefas de Natal entendi que o andar da mocinha revelava exatamente isto: a ternura perdida. Ela era apenas uma pálida sombra da menina que talvez tivesse sido um dia. E forçava-se a ser a adulta que lhe era exigido ser. Falta de ternura. Foi nessa hora que senti compaixão dentro do meu coração e entendi a angústia na minha alma.
Olhei mais uma vez, de forma rápida, para onde ambas estavam. A mãe colocava as coisas dentro do carro. A filha tentava ajudar. A mãe reclamava e fazia algum xingamento. A filha apenas sorria, como se não estivesse naquele lugar. Ternura perdida. Olhei para minha lista de compras. Pensei no Natal. Pensei em mim mesmo. Ocultei as emoções. Entrei no mercado, peguei um carro de compras, esqueci a mulher magra e tentei lembrar a tristeza da adolescente. Foi quando ouvi uma promoção sendo gritada. Era um produto de minha lista. Empurrei o carro para frente, é hora de irmos às compras, a ternura já está perdida.




Um comentário:

Wendel Bernardes disse...

Oi amigo Marcus,
como está?
Quero me desculpar pela ausência aqui no seu blog, muitas vezes fui edificado com seus escritos e nossas conversas...

Quero dizer que desejo a você e sua família um grande final de ano, recheado de boas reflexões e muita unção verdadeira que vem do Trono.


Certamente estaremos juntos nesse 2011 que virá daqui a laguns dias...
Grande abrço pastor!

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